domingo, 1 de janeiro de 2017

Ano Novo

De manso, de mansinho o que está suspira.
Sabe que está a chegar o momento de partir, de ir, de deixar que o transformem numa mistura indestrinçável de sabores doces, de sabores amargos, de cores brilhantes e quentes e de cores frias imersas em penumbras inescrutináveis, em mil milhões de fracções infinitesimais e inseparáveis de tempo que irão sobreviver nos arquivos da nossa memória.

Devagar, devagarinho o que está suspira.
Sabe que muito em breve o seu tempo irá terminar, que deixou marcas em todos nós, umas leves, levíssimas, como beijos de borboletas errantes, outras profundas, tão profundas como o mais profundo dos mares. Umas capazes de nos romper o peito de alegria, outras capazes de quase o rasgar de dor.

Suave, suavemente o que está suspira.
As pernas já se lhe encolhem na posição certa, os braços apoiam-se no seu assento etéreo, a cabeça curva-lhe-se ligeiramente para a frente, naquele conjunto de movimentos automáticos de quem se prepara para se levantar. Dentro em pouco fá-lo-á e sem que ninguém dê por ele – concentrada que está a nossa atenção naquele que está prestes a chegar- sairá de vez.

O Ano Velho está prestes a partir e o Ano Novo prestes a chegar e o melhor que poderemos esperar é que consigamos reter em nós o melhor do que foi, esquecer o pior do que já passou e encontrarmos em nós a esperança, a fé firme, de que o Ano Novo que está para chegar nos trará o máximo de alegria e o mínimo de tristeza.
Estes são os meus votos para todos vós.

Feliz Ano Novo.

sábado, 19 de novembro de 2016

Ma fille

   Je tombe sur l'obscurité qui m'entoure et je ne réussis pas à comprendre comment je suis y arrivé. C'est cette lá la vrai face de ma réalité: brutale, malheureuse, vide. Les jours s'empilent sans un vrais sens, sans distinction, l'un après l'autre comme des feuilles tombés au sol par un Automne inattendus.  

    Ma fille elle reste comme la seule fleur survivant aux premiérs froids de la saison, la seule beauté oú je trouve les forces qui me manquent, le but qui me fait lever chaque matin, pour y être un jour en plus, une heure un plus, un second, un instant a la fois.

    Et elle devient ainsi la plus belle chose dans ma vie, le trésor que ne je veux pas perdre, bien qu'un jour, je le sais, elle devra prendre son propre chemin dans  l'aventure immense de la vie.

sábado, 16 de agosto de 2014

Quinta do Paraíso, Alagoa, Portalegre

As casas são coisas que transcendem a mera materialidade da pedra. São coisas vivas, com corpo e com alma, um ser feito de paredes que se alinham em padrões e geometrias ditadas pelo pragmatismo da vivência quotidiana e das suas necessidade funcionais, a alma composta pela sobreposição dos seres que as habitam. Não é por um acaso linguístico que dizemos que dizemos gostar ou não gostar desta ou daquela casa. É pelo  sentir emanado das pessoas que a habitam, pela sua forma de receber, pelo bem ou pelo mal que nos fazem sentir quando as visitamos.
                E se o corpo da Quinta do Paraíso é modesto, na simplicidade limpa e alentejana das suas paredes brancas debruadas pelo decoro modesto de barras amarelas a demarcar a separação entre as paredes e o chão, na decoração frugal e funcional e na imaculidade da sua limpeza,  a sua alma é grande e dá pelo nome de António Cardoso Casanova, ou mais simplesmente Toni,  espanhol de Palma de Maiorca por nascimento um perfeito português na forma de receber.
                É ele uma daquelas raras pessoas com quem sentimos uma empatia imediata advinda da naturalidade dos gestos e pela afabilidade e gentileza da forma como recebe.  Na Quinta do do Paraíso não há hóspedes. Há, isso sim, amigos que aparecem de improviso ou por acerto prévio, recebidos de braços abertos, com longas conversas ao serão oferecidas na frescura da noite,  sentados sob as ramas das latadas pejadas de uvas que se erguem na defesa das paredes da casa contra a inclemência do sol alentejano e temperadas com a oferta desinteressada de copos de ginjinha suave e doce, e pequeno-almoços de pão cuidadosamente aquecido e barrados com compotas caseiras que nos remetem para as memórias dos tempos da nossa meninice onde a sua confecção era ainda uma arte caseira e uma demonstração de habilidade e carinho pela boa doçaria.

                Quem se hospeda na Quinta do Paraíso é recebido como um amigo e o Toni, esse, sabe receber tão bem amigos que quem vá por bem não poderá deixar de sentir menos do que pena por partir e não menos do que vontade de regressar.

sábado, 13 de agosto de 2011

Como ?

 
   Como é que se pode extirpar a dor ? Arrancar do mais profundo de nós esse mal que nos consome de forma lenta mas inexorável ? Como destruir esse cancro tremendo que nos faz recear a própria noite do dia que ainda não nasceu e nos impede de gozar o dia em que acabámos de acordar ?
   Como se apaga a recordação do que foi, a ideia do que poderia ter sido e será jamais ? Como silenciar a dúvida eterna que é não saber se poderíamos ter feito algo mais para mudar o que é já imutável ?
   Como aprender a acordar já com essa tormenta no peito que conduz o nosso primeiro pensamento consciente exactamente na direcção que tudo daríamos para evitar ? Como dissipar nesses primeiros instantes a memória de presenças perdidas para sempre, a memória dos momentos bons e maus com que escrevemos a história dos dias de uma vida que sendo nossa deixou de súbito de o ser ?
   Como encontrar a força para sorrir quando tudo o que queremos fazer é chorar ? Como falar do futuro quando todas as palavras que nos assomam à mente são sobre um passado que não regressará ?
   Como dissipar a raiva que nos ruge no peito pelo abandono a que fomos votados, a revolta contra a injustiça de nos ter sido roubado o direito à decisão, o direito à escolha e se calhar ao próprio erro com que é construída a experiência da nossa humanidade ?
   Como ? Quem mo ensina ? Quem o sabe ?

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Fim de dia


Era já noite cerrada quando saiu para a rua.
Caía uma morrinha rala e esparsa que tornava as pedras calcárias da calçada escorregadias. Apesar disso não abriu o guarda-chuva. Deixou-o ficar onde estava enfiado na pequena bolsa de rede cosida ao topo da pasta de nylon. Sabia-lhe bem a frescura leve dos borrifos de água a aterrarem-lhe na cara. Faziam-no sentir leve, revigorado, limpo, depois daquelas longas horas fechado no escritório em frente ao computador a atender uma avalanche interminável de telefonemas e de mensagens de correio electrónico.
Sentia aquele estranho tipo de felicidade que se costuma associar aos prisioneiros que obtêm permissão para uma saída precária e tal como eles, naquele momento, não queria pensar na inevitabilidade do regresso com data e hora marcada. Naquele instante limitava-se a saborear o presente com a avidez com que um bebedor sequioso saboreia a largos golos uma cerveja fresca e leve no pingo do Verão.
Tinha saído do emprego com quase duas horas de atraso sobre a hora prevista, mas isso tinha como contrapartida o não ter que correr para o comboio. Tinha tempo, muito tempo, para apanhar o seguinte. Podia por isso dar-se ao luxo de descer a rua devagar e deixar a mente divagar acompanhando o olhar que saltitava entre as montras iluminadas de lojas encerradas e encarceradas por detrás de barras anti-roubo.
Aqui e além ainda se via um ou outro transeunte apressado mas a maior parte das pessoas passeava-se já com a lassidão de quem terminou o dia e já não tem nenhum compromisso ou hora marcada antes do início de nova jorna.
Respirou fundo deixando uma languidez doce escorrer-lhe por entre os músculos doridos e ainda contraídos pela tensão nervosa do trabalho. Só aos poucos ia acalmando, como um combatente cujo corpo só muito lentamente se fosse dando conta de que a refrega tinha terminado. Aos poucos as passadas foram-se-lhe tornando mais lentas, mais descontraídas, perdendo a pressa de chegar sabe-se lá a que lugar desconhecido.
Dentro em pouco estaria em casa e por umas horas, poucas mas preciosas, poderia sentir-se de novo um homem livre.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Divertimento naútico

Mal pus os pés na rua miquei logo a cena! O miúdo, que mal tinha idade para grumete, lá seguia rua acima a tentar que a miúda não o deixasse na alheta. Com o trombil virado a bombordo lá ia soltando umas bacoradas gastas, daquelas que até eu já usava quando ainda andava de cueiros, a ver se a garina folgava as escotas e o deixava tentar abordagem, estão a ver ? Nem sequer topava a figura triste que fazia e lá tentava manter-se com bom seguimento.
Mas aquilo só visto!
Na cabeça uma daquelas melenas rasta, mal aduchadas sob o chapéu de basebol a escaparem a sotavento (ai se fosse meu filho: querenava-lhe logo a mioleira no primeiro barbeiro que encontrasse!) e a pala a tapar-lhe a orelha de barlavento. Pendurado do gasganete trazia-me uma daquelas voltas de ouro falso, tão grossa e tão comprida que dava para ancorar à vontadinha um navio de linha ao largo. Na camisola preta ia estampada a branco a focinheira dum gajo qualquer (acho que era daquele janado lá da Jamaica, 'tão a ver? O gajo das baleias, porra!). As calças então nem vos digo, todas caçadinhas para aí a meio do rabo, com a escotilha da ré escancarada a deixar ver de sopetão o porão inteiro. Lá lhe ia valendo naquele apuro a roupa interior senão até o mastro se lhe via!
Para ajudar à festa levava um par daqueles auscultadores modernaços, daqueles que mais parecem um par de bichos de conta nojentos, enfiados nas orelhas, com os fios a servirem de ovéns quase até à cinta. Pela amura de estibordo levava uma daquelas malas East Pack - daquelas da moda que custam uma pipa de massa, cheias de bonecada, topam? - o que cá para mim era de morrer a rir porque o gajo, mesmo que não desse por isso, estava para ali a rumar a Sul!
E então os andantes? Aquilo é que só visto! Uns talegos com umas solas tais que se o gajo se baldasse pela borda fora nem a alma se lhe aproveitava: ia direitinho ao fundo só com o lastro das chancas! Mas lá engraxadinhas isso estavam. Cá para mim o se o gerimu perdesse mais tempo a melhorar a lábia e menos a lustrar as botinas, de certezinha absoluta que dava com melhor derrota. Mas enfim, cada um é como cada qual e a verdade é que o gajo lá seguia com o braço lançado à amura da moçoila que mais parecia um arpéu de abordagem. Mais chegadinho e havia lenha! Salvava a rapariga a defensa em forma de mala a tiracolo.
Mas estou para aqui a falar e a falar do gajo e bem vistas as coisa a miúda também era uma alminha que só visto: contado ninguém acreditava. A garina mal tinha acabado de botar corpo e já parecia sei lá eu o quê. Valha-me Deus!
Para começar levava a proa mais pintada do que a carranca de um navio-escola. A camisola e o casaco iam tão rizados à altura do umbigo que lhe deixavam a barriga todinha à mostra. Se rizasse mais o velame – e que belo par de velas redondas envergava ela - isso é que era cá um espectáculo! Eu cá tratava logo de lhe tentar subir à gávea, ai nanas! Obras vivas não as havia mas e então as obras mortas? Estava ali tudo: amura, bordo e quilha à mãozinha de semear, ou melhor, de colher! Aquilo era cá um espectáculo tal que não havia gajo lastrado que não fizesse uma bordada de propósito, por muito cochado que fosse, para lhe cruzar a esteira! Se não o fizesse era porque era cego. Caramba!
O que vale é o parzinho lá virou de bordo por alturas do cimo da rua e afastou-se do meu rumo, senão quem se metia ao mar era eu, com tramontana ou sem ela e macacos me mordam se não punha o gajo à ginga. E era sorte, então não era!

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ano Novo



    Lá fora a temperatura é baixa, mau grado o cobertor de nuvens que transforma a alba num espectáculo de sombras chinesas recortadas contra o céu no horizonte. O pormenor das coisas perde-se numa mancha pardacenta, azulada, que a vista só a muito custo consegue penetrar e um frio intenso ataca as camadas de roupa com que as pessoas se procuram proteger.
    É a primeira segunda-feira a seguir ao Natal, aquela semana estranha que quem pode aproveita para umas férias fora de época. O comboio segue nem meio cheio, nem meio vazio, com lugares estranhamente desocupados que transmitem aos passageiros habituais uma vaga inquietação que só ao fim de algum tempo se percebe ser causada pela estranheza da falta de um miríade de rostos anónimos a quem a repetição do encontro já deu qualidades e contornos de familiaridade.
    Adivinham-se as ruas a padecerem do mesmo mal, de uma sensação de despojamento e de vacuidade advinda da falta de comparência de muitos ao encontro diário e involuntário por entre a estreiteza dos passeios calcetados que a chuva miudinha depressa torna perigosamente escorregadios. Tudo parece lento, quase suspenso, como se a própria cidade tivesse deixado de respirar, uma apneia momentânea que será quebrada dentro de dias com o regresso das pessoas ao trabalho.
    A carruagem mantém-se mergulhada num silêncio inusitado, numa acalmia pouco usual, num hiato de conversas e dos ruídos surdos e abafados das músicas de discoteca que costumam escapar-se como duendes endiabrados dos auscultadores de leitores de MP3 demasiado potentes. Aqui e ali alguns passageiros dormitam, lêem ou observam a paisagem fantasmagórica que escorre com a chuva ao longo das janelas.
    Dentro de alguns dias a vida respirará fundo como que a ganhar alento para continuar e de repente, antes que haja tempo para nos habituarmos a essa ideia, será tempo de um novo reinício, de um novo ano com os seus desafios, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, um rol infindável de pequenas e grandes ocorrências que não serão nada mais, afinal de contas, do que as únicas marcas naturais entalhadas no discorrer dos nossos dias.
 Feliz Ano Novo!