quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Fim de dia


Era já noite cerrada quando saiu para a rua.
Caía uma morrinha rala e esparsa que tornava as pedras calcárias da calçada escorregadias. Apesar disso não abriu o guarda-chuva. Deixou-o ficar onde estava enfiado na pequena bolsa de rede cosida ao topo da pasta de nylon. Sabia-lhe bem a frescura leve dos borrifos de água a aterrarem-lhe na cara. Faziam-no sentir leve, revigorado, limpo, depois daquelas longas horas fechado no escritório em frente ao computador a atender uma avalanche interminável de telefonemas e de mensagens de correio electrónico.
Sentia aquele estranho tipo de felicidade que se costuma associar aos prisioneiros que obtêm permissão para uma saída precária e tal como eles, naquele momento, não queria pensar na inevitabilidade do regresso com data e hora marcada. Naquele instante limitava-se a saborear o presente com a avidez com que um bebedor sequioso saboreia a largos golos uma cerveja fresca e leve no pingo do Verão.
Tinha saído do emprego com quase duas horas de atraso sobre a hora prevista, mas isso tinha como contrapartida o não ter que correr para o comboio. Tinha tempo, muito tempo, para apanhar o seguinte. Podia por isso dar-se ao luxo de descer a rua devagar e deixar a mente divagar acompanhando o olhar que saltitava entre as montras iluminadas de lojas encerradas e encarceradas por detrás de barras anti-roubo.
Aqui e além ainda se via um ou outro transeunte apressado mas a maior parte das pessoas passeava-se já com a lassidão de quem terminou o dia e já não tem nenhum compromisso ou hora marcada antes do início de nova jorna.
Respirou fundo deixando uma languidez doce escorrer-lhe por entre os músculos doridos e ainda contraídos pela tensão nervosa do trabalho. Só aos poucos ia acalmando, como um combatente cujo corpo só muito lentamente se fosse dando conta de que a refrega tinha terminado. Aos poucos as passadas foram-se-lhe tornando mais lentas, mais descontraídas, perdendo a pressa de chegar sabe-se lá a que lugar desconhecido.
Dentro em pouco estaria em casa e por umas horas, poucas mas preciosas, poderia sentir-se de novo um homem livre.

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