quarta-feira, 26 de março de 2008

Óstia , cariño!

Cá para mim uma das razões secretas que levou o nosso D. Afonso Henriques a declarar a independência, para além da óbvia vantagem de poupar uns valentes cobres nos impostos a liquidar a D. Afonso VII (impostos esses que, aliás, passou, com toda a certeza a colectar aos seus súbditos, situação que qualquer pessoa normal dirá ser bem mais vantajosa do que a primeira), foi um defeito que desconfio ser de natureza congénita e, com toda a segurança, endémica, dos nossos vizinhos Leoneses de além-fronteiras: um grau avançadíssimo de surdez psicológica, indutor de uma propensão irritante para falarem demasiado alto! Suspeito também que esse defeito tenha sido preservado, como um legado único e imorredoiro, de geração em geração, alastrando em labaredas devoradoras aos restantes reinos da altura, à medida que estes se foram unificando para dar origem ao que hoje conhecemos como Espanha.
Prova disso é que, graças à decisão atempada e assisada do nosso ilustre e impulsivo fundador, a população portuguesa em geral nunca chegou a ser afectada por tal ruindade, exceptuadas que sejam umas poucas de singularidades, a maior parte delas motivadas por natural dureza geriátrica de ouvido, sendo a existência das restantes de todo imprescindível, como é de conhecimento universal, para a confirmação da regra geral.
Fica assim posto a nu (que a verdade, tal como outras coisas da vida, se deseja sempre tal como Deus a pôs ao Mundo) o verdadeiro motivo pelo qual sempre recebi, com arrepios de horror a percorrem-me a auto-estrada da espinha e contracções de náuseas a escalarem-me as entranhas, os vaticínios tremendos do nosso ilustre Saramago, da inevitabilidade da absorção de Portugal, qual nódoa de café derramado na mesa imaculada da Península Ibérica, pelo seio esponjoso da nação Espanhola.
É que, desde já, confesso o meu terror de, ao confirmar-se tão horrendo prognóstico, ver-me privado do doce privilégio de poder chamar a atenção da minha mulher com um toque suave na mão e um discreto “Desculpa querida, mas podes dar-me um minuto?”, tendo, ao invés, de passar a demonstrar o meu iberismo com um portentoso
“Óstia cariño!, Tengo que hablarte!”
e obter a confirmação duvidosa mas imediata da minha virilidade latina sob a forma de revoadas de pombos assustados a levantarem voo e a largarem penas lastradas de pânico sobre os restos inacabados das suas refeições de migalhas e grãos de milho abandonados por entre as pedras axadrezadas de museológicas calçadas à portuguesa.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Fotografia

Era uma fotografia a preto e branco, a fotografia de um velho angolano, sentado, cabeça entre as mãos, na entrada de uma cubata perdida em qualquer recanto ignoto. O enquadramento só lhe deixava à vista o rosto levemente pergaminhado, ornado por um olhar tão triste, e tão profundo e que parecia acompanhar-nos fosse qual fosse o ângulo porque abordássemos a fotografia. Aquele olhar mantinha-se, sem revolta, sem ódio, sem esperança. Só tristeza... E a emoldurá-lo aquelas mãos, enormes, impotentes e ociosas pela força das circunstâncias, rudes ao ponto de conferirem a todo o conjunto o aspecto de uma escultura finamente talhada na inapropriadamente rica madeira de ébano. Pareciam deslocadas. Pareciam as mãos de outro que não as do velho, como se uma qualquer alma benfeitora o quisesse ajudar a suportar o peso da velha cabeça e dos desgostos nela encerrados.

Quanto mais olhava para aquela cabeça, para aquelas mãos, mais angústia sentia. No meio de todos aqueles horrores feitos de lágrimas e dos ventres rotundos de crianças perdidas e marcadas pela fome, acarinhadas por não mais que o resignado e silencioso desespero das mulheres que as acompanhavam, o rosto daquele velho pareceu-me o mais pungente epílogo para as acusações contidas nas fotografias daquela improvisada, inapropriada e tristemente ignorada galeria.

Passou-se muito tempo antes que conseguisse desviar os olhos daquela fotografia feita súplica talhada num bloco perpétuo de negro pau...

segunda-feira, 17 de março de 2008

Quica...

- Quica! Oh Quica! É a Quica!
A voz, fina como um cordão de seda apanhou-me a meio das escadas. Um olhar rápido por cima do ombro da minha mãe permitiu-me entrever a pequena figura de mulher, com o aspecto frágil e gracioso de uma boneca de porcelana. Sorri. Nunca o pude deixar de fazer ao sentir a alegria pura que, a maioria das vezes, transbordava das expressões da Tia Teresa, com uma facilidade estonteante e avassaladora.
A imagem daquela mulher pequena, senhora de uns estranhos olhos amendoados sempre prontos a fenderem-se, aos cantos, numa intrincada rede de pequenas rugas numa perfeita concordância com uma gargalhada baixa e harmoniosa, sempre foi uma certeza tão constante como ingénua dos dias da minha vida. Recordo-me dela quase desde que me recordo de mim próprio. E tudo o que me consigo recordar é bom!
Lembro-me dos dias da meninice e dos lanches com que me interrompia as intermináveis tardes de brincadeira, dos estranhos jantares de pequenas fatias de pão entremeadas de finas fatias de fiambre, queijo ou chouriço. Lembro-me do ritual em que convertia a preparação de um bule de chá, a água fervida mas nunca em cachão e dos cinco minutos precisos que o chá deveria estar coberto - «nem mais um nem menos um, por amor de Deus». Lembro-me dos incontáveis sacos de plástico em que envolvia tudo (« Um dia mete o marido num saco de plástico para não ganhar mofo » - costumava-lhe eu dizer-lhe num tom de mofa amigável, apenas para ter o prazer divertido de lhe ouvir a censura brincalhona com que retorquia invariavelmente). Lembro-me com um carinho insuperável dos dias de Verão na grande quinta Transmontana onde há tanto tempo se tinha desenrolado parte da sua juventude. Lembro-me de tanto, de tanto...
Um dia, não há muito a Tia Teresa partiu. Não me avisou! Um dia estava lá, no outro estava para além de qualquer força humana. Partiu simplesmente, deixando para trás um vazio entontecedor que ninguém sabe como preencher, que, aliás, ninguém quer ver preenchido para que possa ficar como um monumento a tudo o que foi para nós, como uma recordação cristalina de dias bons e felizes quando a vida era tão fácil quanto bela e quando tudo eram certezas imortais.
Ela, uma professora de desenho que sempre disse, numa tristeza sóbria, que a sua pintura não tinha qualidade, soube, afinal, pintar-nos na alma as mais belas e indestrutíveis recordações.
Bem-haja, pintora de almas, professora de corações...

Diz-me, por favor…

Diz-me por favor que não estou a ficar velho. Diz-me que se conseguisse arranjar a coragem e tudo o mais que fosse necessário para me levantar e meter conversa com aquela rapariga que dormita a um par de bancos de distância do meu lugar no comboio ela não olharia para mim com um sorriso raiado de ironia e divertimento, por não saber como me dizer que para ela a areia do meu tempo se esgotou, varrida de mansinho pelo vento para a parte da vida situada já para além dos cumes mais verdes.
Diz-mo por favor. Olha: se quiseres mente!
Ou então, melhor ainda, não digas nada e deixa-me ver reflectida na doçura entristecida dos teus olhos a confirmação do que já sei, ainda que para mim seja de um espanto perpétuo descobrir que os anos se escoam em breves segundos de uma relatividade Einsteiniana, descobrir que o tempo foge e se perde e se esconde em cantos do Universo tão esconsos que a simples razão não os concebe nem alcança.
E já agora diz-me, por favor que não é a minha aquela face arredondada e amarrotada por rugas aos cantos dos olhos e da boca que me fita todas as manhãs do outro lado da barreira vítrea do espelho do nosso quarto de banho. Diz-me que não sou eu aquela figura em que não consigo (ou se calhar simplesmente não quero) rever a imagem das fotografias a preto e branco que guardas nos álbuns que dormem nas prateleiras do pequeno móvel da entrada de nossa casa, esquecidos nos seus dosséis de fina poeira.
Diz-mo tudo isso por favor. Ou então cala-te para não me mentires. Mas por favor fica aqui, junto de mim, e aperta-me a mão devagarinho, como se eu fosse apenas menino assustado pelos ecos do teu silêncio.
Diz-me apenas que ficas e por favor, por favor, não me digas mais nada.