sábado, 25 de dezembro de 2010

Reformas



    Da porta do outro lado do átrio de entrada para a minha empresa saía um senhor de idade, dono de um rotundidade abdominal notável. Vestia aquele tipo de roupa que se usa designar por informal, mas um olhar um pouco mais atento não deixava de revelar serem de excelente qualidade e algumas das peças feitas por medida num dos últimos alfaiates Portuenses que ainda resistem à concorrência infernal dos pronto-a-vestir.
   - Bom dia senhor cônsul. - cumprimentei eu ao mesmo tempo que lhe abria pressuroso a porta envidraçada de acesso às escadas do prédio.
   - Bom dia, bom dia – retorquiu ele – muito obrigado, mas faça-me o favor de passar primeiro.
   - De forma alguma senhor cônsul, de forma alguma. Queira ter a bondade de passar.
   Agradeceu-me de novo com um ar satisfeito e lá saiu, bamboleando-se de bordo a bordo para equilibrar o excesso de peso, com o casaco de caxemira, ideal para a temperatura baixa que por essa altura fazia na rua, pendente da curva do braço.
Preparava-me para sair quando fui surpreendido por um outro cumprimento
   - Bom dia! Então como vai isso hoje ?
   A voz vinha da porta de onde o cônsul havia surgido. Virei-me e dei de caras com o único funcionário (ou pelo menos assim o julgo) do consulado, um senhor de idade, já manco por força de uma artrite avançada que apesar de toda a medicação insistia em não o abandonar.
    Conheço-o há já cerca de seis anos, desde que a empresa para que trabalho se mudou de Matosinhos para este edifício no topo de uma das ruas principais do centro Portuense. É um senhor afável, sempre com um sorriso nos lábios e de conversa amigável e suave que cumprimenta toda a gente com quem se cruza nas escadas ou que por ele passe enquanto espera a chegada de um dos arcaicos elevadores asmáticos que lá nos tenta transportar desde o rés-do-chão até este ou aquele andar, com periódicos insucessos que nos condenam a uma prisão temporária nas suas entranhas enquanto esperamos que o convençam a cumprir as suas obrigações.
    Segurava com dificuldade a porta com um pé enquanto tentava a custo não largar uma miríade de sacos que segurava a custo, distribuídos pelas mãos e ângulos dos cotovelos. Imagino que se tratassem das compras de Natal do patrão. Não era de admirar: das poucas conversas que tivera com o senhor ficara a saber que trabalhava para o cônsul havia muitos anos. Ao que parece trata-se de uma espécie de faz-tudo, cujos encargos se estendem do aparar da relva na residência particular do patrão ao hastear matinal da bandeira do país representado pelo consulado todas as manhãs, às nove me ponto, faça chuva ou sol.
    Por vezes encontro-o à entrada, a caminho ou de regresso do desincumbir-se de uma qualquer tarefa que o obriga a calcorrear as ruas da cidade de lés a lés. 
Quando o consigo reter por uns minutos e convencê-lo a falar de si próprio – é por natureza um homem reservado e cioso da sua privacidade – queixa-se do calor excessivo do Estio ou das dores que lhe tolhem os ossos durante o Inverno e fala dos episódios por que já passou no desempenho das suas modestas funções.
Não sei se é casado, solteiro ou viúvo, se tem filhos ou não. Muito menos sei onde vive a que se dedica nos seus tempos livres “Raros, muito raros!” segundo ele. Tudo o que julgo saber é que é um homem conformado, que pouco mais espera de cada dia para além de não ser pior do que o que o antecedeu.
   - E então ? Ainda por aqui ? - pergunto-lhe eu por vezes quando nos cruzamos na entrada do edifício – E a reforma ? Para quando é ? Olhe que já bem a merece avaliar pela idade que aparenta.-
   - Reforma? - retorque ele – Isso é que era bom! Trabalhei tanto e por tão pouco na vida que já muito satisfeito me dei por ter que comer todas as noites. Muita miséria, acredite no que eu lhe digo, muita miséria!
   E prossegue:
   -Pelo andar da carruagem a minha reforma há de ser em hotel de luxo, quarto de pinho com quatro paredes, tecto e chão tudo ao alcance da mão sem ter que me levantar. Isso está bem!
   E eu lá solto um riso casquinado e de circunstância enquanto subo as escadas a pé sem nunca saber se o homem ficaria ofendido se o não fizesse ou se se fica ofendido por o fazer. Afinal, bem vistas as coisas, se calhar devia era chorar! Talvez um dia, quando eu me reformar, venhamos a ser companheiros involuntários, hóspedes do mesmo hotel de luxo.

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