sábado, 25 de dezembro de 2010

Fique

No estacionamento da estação apenas dormitam meia dúzia de carros enrolados sobre si próprios, cobertos por uma fina película de gelo que revela que passaram por ali a noite. Por isso, ao contrário dos outros dias, consigo arranjar um lugar muito perto da entrada nascente.
Desço as escada que conduzem às bilheteiras e a novas escadas que conduzem a cada uma das plataformas. Ainda não me consegui habituar por completo a esta nova estação totalmente subterrânea, uma cripta enterrada sob as linhas de comboio onde num dia movimentado, num simbolismo quase maçónico, os passageiros se acotovelam ou se perfilam em frente às bilheteiras antes de emergirem para a luz e subir para o comboio que os há-de transportar para os destinos imediatos, ou pelo menos pretendidos, da sua vida.
Ao fim de quatro anos de viagens diárias já conheço rostos e hábitos que se tornaram um pouco as marcas usuais do meu dia-a-dia, mas hoje a estação está deserta e não tenho que correr para o comboio para tentar arranjar um bom lugar. Subo as escadas de acesso à linha três devagar, a saborear o ar frio da manhã que na minha imaginação é sinónimo de ar limpo como é limpa, fria e cheirosa a roupa que a minha mulher põe a secar nas cordas da janela da cozinha. A plataforma também está vazia. Apenas o revisor se passeia ao longo da composição, soltando baforadas de fumo que extrai a grandes haustos de um cigarro entalado entre os dedos.
Entro na carruagem apenas para descobrir o mesmo cenário que lá fora. Só aqui e ali uma cabeça ensonada dormita num dos lugares preferidos pelos passageiros, junto às janelas cujas molduras de plástico fornecem um apoio, ainda que maldosamente inclinado, para o cotovelo ou o braço. Também eu escolho um desses lugares, Sento-me, verifico os bolsos para confirmar a presença da carteira e do passe e olho à volta à procura de rostos familiares. Apenas descubro um enterrado num lugar lá para o início da primeira carruagem.
Sinto-me só e de repente inunda-me uma vontade de largar tudo, sejam quais forem as consequências, e de também eu ficar em casa a gozar o prazer raro de um dia com a família, fazer as malas e sair mais cedo, sem pressas, em direcção a casa dos meus pais. Poderia dizer que não o faço por ser uma pessoa responsável, por estar ciente das minhas obrigações para com os clientes da minha empresa mas estaria a mentir. Afinal de conta eles são apenas vozes distantes ao telefone que tenho que manter minimamente satisfeitos para conseguir não ser despedido e receber um vencimento que a crise e os cortes tornaram este ano ainda mais parco. Vou trabalhar apenas pelo receio de perder esta segurança aparente que uma má gestão, uma falência de clientes, um novo imposto ou apenas um golpe de má-sorte podem arrastar para longe com a mesma facilidade com que o vento arrasta uma palha. Mas como é a minha única fonte de rendimentos vou. Tenho que ir! Não queria mas vou. Sem alegria, sem expectativas para além de que o dia termine depressa (e para isso, ironicamente, é fundamental que tenha muito trabalho), mas vou!
Quanto a si lembre-se de que hoje é véspera de Natal por isso, se conseguir, se tiver a coragem que me falta fazer frente às obrigações impostas pelos meus patrões, pelos meus clientes, pelas pressões sociais, seja pelo que for que me faça sentir obrigado a ir trabalhar num dia como este, então fique. Afinal de contas, como diz a canção do Sérgio Godinho, hoje é o último dia do resto da sua vida, essa vida que nada nem ninguém sabe quando começa e muito menos quando acaba. Por isso fique!
Feliz Natal

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