segunda-feira, 17 de março de 2008

Quica...

- Quica! Oh Quica! É a Quica!
A voz, fina como um cordão de seda apanhou-me a meio das escadas. Um olhar rápido por cima do ombro da minha mãe permitiu-me entrever a pequena figura de mulher, com o aspecto frágil e gracioso de uma boneca de porcelana. Sorri. Nunca o pude deixar de fazer ao sentir a alegria pura que, a maioria das vezes, transbordava das expressões da Tia Teresa, com uma facilidade estonteante e avassaladora.
A imagem daquela mulher pequena, senhora de uns estranhos olhos amendoados sempre prontos a fenderem-se, aos cantos, numa intrincada rede de pequenas rugas numa perfeita concordância com uma gargalhada baixa e harmoniosa, sempre foi uma certeza tão constante como ingénua dos dias da minha vida. Recordo-me dela quase desde que me recordo de mim próprio. E tudo o que me consigo recordar é bom!
Lembro-me dos dias da meninice e dos lanches com que me interrompia as intermináveis tardes de brincadeira, dos estranhos jantares de pequenas fatias de pão entremeadas de finas fatias de fiambre, queijo ou chouriço. Lembro-me do ritual em que convertia a preparação de um bule de chá, a água fervida mas nunca em cachão e dos cinco minutos precisos que o chá deveria estar coberto - «nem mais um nem menos um, por amor de Deus». Lembro-me dos incontáveis sacos de plástico em que envolvia tudo (« Um dia mete o marido num saco de plástico para não ganhar mofo » - costumava-lhe eu dizer-lhe num tom de mofa amigável, apenas para ter o prazer divertido de lhe ouvir a censura brincalhona com que retorquia invariavelmente). Lembro-me com um carinho insuperável dos dias de Verão na grande quinta Transmontana onde há tanto tempo se tinha desenrolado parte da sua juventude. Lembro-me de tanto, de tanto...
Um dia, não há muito a Tia Teresa partiu. Não me avisou! Um dia estava lá, no outro estava para além de qualquer força humana. Partiu simplesmente, deixando para trás um vazio entontecedor que ninguém sabe como preencher, que, aliás, ninguém quer ver preenchido para que possa ficar como um monumento a tudo o que foi para nós, como uma recordação cristalina de dias bons e felizes quando a vida era tão fácil quanto bela e quando tudo eram certezas imortais.
Ela, uma professora de desenho que sempre disse, numa tristeza sóbria, que a sua pintura não tinha qualidade, soube, afinal, pintar-nos na alma as mais belas e indestrutíveis recordações.
Bem-haja, pintora de almas, professora de corações...

2 comentários:

O Réprobo disse...

Bela e merecida homenagem. Uno-me ao Espírito que lhe presidiu.
Abraços ao Autor e a Quem mais de direito.

ana v. disse...

Bonita homenagem. A sua Tia Teresa transformou-se assim na tia de todos nós, tão bem e com tanta ternura a evocou.
Bem-vindo à blogosfera.
Voltarei.