A noite era povoada por monstros!
Acordavam-no a meio caminho entre o adormecer das madrugadas cinzentas daquele Abril, com murmúrios sibilinos que lhe sopravam o medo aos ouvidos, o seu hálito gelado, a insinuar-se por entre os lençóis da cama e a expulsar o calor do corpo da mulher que dormia profundamente ao seu lado.
Para ele o pior era nunca saber quando é que eles viriam!
Passavam dias e dias sem o atormentarem, aparentemente esquecidos da sua existência sem importância para o resto do Mundo que jazia para lá do umbral da porta de entrada da habitação familiar. Depois, de repente, reapareciam a encurralar-lhe o ânimo numa esquina sem saída, a tentar tomar-lhe de assalto os últimos redutos de tranquilidade, qual bando de miúdos rufias a molestar um garoto infeliz no pátio da escola.
Nesses dias, nada mais lhe restava para além da decisão assustadora de os enfrentar, empenhando no combate os resquícios de amor-próprio e confiança que conseguisse arrebanhar, entrincheirado num estado de semiconsciência algures entre o sono e o despertar convertido em baluarte de papel contra as frechadas de medo e pânico. Fechava teimosamente os olhos, tentava acalmar a respiração feita de haustos de ar que mais pareciam os traços interrompidos da sinalização da auto-estrada a fugir debaixo de um carro e injuriava-os mentalmente com todos os apodos que a imaginação lhe sugeria, repetindo para si mesmo, vezes e vezes sem conta, que qualquer fraqueza que demonstrasse se converteria, de imediato, em força motora daqueles demónios saídos do mais profundo de si mesmo.
E os monstros continuavam a sua dança infindável, tirando vez para se virem deleitar com o seu medo, um após o outro, enquanto os restantes flutuavam sádicos, invisíveis, intocáveis, por entre as brumas pardacentas da madrugada, soltando gargalhadas sinistras que só ele ouvia enquanto tentava, sem sucesso, esconder a inquietação entre as almofadas com que construía fortes improvisados para se esconder.
Por vezes conseguia vencê-los pela simples força da negação da sua existência, o que os privava da sua substancialidade incorpórea. Nesses dias, eles cansavam-se depressa e abandonavam o quarto pelas frinchas estreitas e poeirentas da caixa do estore por onde o vento assobiava com uma fúria gelada durante os dias de tempestade e permitiam-lhe regressar ao doce conforto um sono profundo e tranquilo.
Mas nos outros dias eles pressentiam a sua hesitação, a sua fraqueza, a sua falta de ânimo e porfiavam nos seus intentos. Nesses dias, a noite convertia-se numa batalha ininterrupta contra medos e ansiedades durante horas a fio, um tormento a que só os primeiros fios de luz a coarem-se débeis pela janela mal vedada conseguiam impôr umas tréguas frágeis.
Levantava-se para esconder o desalento e a fadiga debaixo da cama, numa das caixas de plástico translúcidas, na companhia silenciosa de sapatos e chinelos velhos, fazia a barba, tomava banho, vestia-se e escondia as olheiras por detrás de um sorriso falso aparafusado ao rosto. O relógio, esse tirano implacável que lhe governava vida através do movimento lento dos seus ponteiros, dizia-lhe que eram horas de acordar o resto da família.
- Bom dia, querida! Dormiste bem?
Até ao fim do dia era tempo de tréguas. Logo, muito mais logo, o relógio e o cansaço
dar-lhe-iam o sinal de partida para nova refrega do seu cerco de Tróia pessoal.
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