terça-feira, 22 de julho de 2008

As ruínas

O Pedro e a Susana separaram-se!
Para trás ficaram anos de uma casa, filhos e destinos partilhados, mas também anos e anos de interesses e expectativas progressivamente mais díspares, numa separação de sonhos e almas que os tornavam cada vez mais amargos, mais sombrios, cada vez mais parecidos com um par de soldados entrincheirados em valas paralelas, tão próximas que um simples estender ocasional de mãos era suficiente para transpor a terra de ninguém entre ambos, mas ao mesmo tempo tão longínquas que nem a voz mais potente as conseguiria unir.
Não que tivessem o hábito de gritar um com o outro. Muito pelo contrário. Durante dias a fio vi-os tentar esconder as suas divergências de terceiros, numa guerra de guerrilha surda e muda, em que os rancores e as queixas se empilharam entre ambos como corpos fantasmagóricos presos nos rolos de arame farpado que se foram estendendo entre as vidas dos dois.
Aos poucos e poucos, à medida que a amargura se foi instalando confortavelmente no espaço cada vez maior entre eles, o desfecho desta pequena tragédia perdida na imensidão de um Mundo demasiado pequeno para o conseguirem partilhar tornou-se, primeiro previsível e depois, quase de um momento para o outro, de uma inexorabilidade assustadoramente fatídica.
Ontem fui com o Pedro à casa, que ainda há poucos dias eu dizia ser a de ambos, buscar mais alguns pedaços de vida que ele por lá tinha deixado, disfarçados de roupas, discos compactos e objectos pessoais. Por momentos, fiquei sozinho na sala com uma tristeza enorme a galgar-me, imparável, as ameias da alma enquanto observava as paredes onde permanecem dependuradas fotografias de onde os rostos sorridentes de ambos me contemplam, imobilizados em memórias emolduradas, como pedras tombadas no solo das ruínas de dias passados e felizes.

Os Monstros

A noite era povoada por monstros!
Acordavam-no a meio caminho entre o adormecer das madrugadas cinzentas daquele Abril, com murmúrios sibilinos que lhe sopravam o medo aos ouvidos, o seu hálito gelado, a insinuar-se por entre os lençóis da cama e a expulsar o calor do corpo da mulher que dormia profundamente ao seu lado.
Para ele o pior era nunca saber quando é que eles viriam!
Passavam dias e dias sem o atormentarem, aparentemente esquecidos da sua existência sem importância para o resto do Mundo que jazia para lá do umbral da porta de entrada da habitação familiar. Depois, de repente, reapareciam a encurralar-lhe o ânimo numa esquina sem saída, a tentar tomar-lhe de assalto os últimos redutos de tranquilidade, qual bando de miúdos rufias a molestar um garoto infeliz no pátio da escola.
Nesses dias, nada mais lhe restava para além da decisão assustadora de os enfrentar, empenhando no combate os resquícios de amor-próprio e confiança que conseguisse arrebanhar, entrincheirado num estado de semiconsciência algures entre o sono e o despertar convertido em baluarte de papel contra as frechadas de medo e pânico. Fechava teimosamente os olhos, tentava acalmar a respiração feita de haustos de ar que mais pareciam os traços interrompidos da sinalização da auto-estrada a fugir debaixo de um carro e injuriava-os mentalmente com todos os apodos que a imaginação lhe sugeria, repetindo para si mesmo, vezes e vezes sem conta, que qualquer fraqueza que demonstrasse se converteria, de imediato, em força motora daqueles demónios saídos do mais profundo de si mesmo.
E os monstros continuavam a sua dança infindável, tirando vez para se virem deleitar com o seu medo, um após o outro, enquanto os restantes flutuavam sádicos, invisíveis, intocáveis, por entre as brumas pardacentas da madrugada, soltando gargalhadas sinistras que só ele ouvia enquanto tentava, sem sucesso, esconder a inquietação entre as almofadas com que construía fortes improvisados para se esconder.
Por vezes conseguia vencê-los pela simples força da negação da sua existência, o que os privava da sua substancialidade incorpórea. Nesses dias, eles cansavam-se depressa e abandonavam o quarto pelas frinchas estreitas e poeirentas da caixa do estore por onde o vento assobiava com uma fúria gelada durante os dias de tempestade e permitiam-lhe regressar ao doce conforto um sono profundo e tranquilo.
Mas nos outros dias eles pressentiam a sua hesitação, a sua fraqueza, a sua falta de ânimo e porfiavam nos seus intentos. Nesses dias, a noite convertia-se numa batalha ininterrupta contra medos e ansiedades durante horas a fio, um tormento a que só os primeiros fios de luz a coarem-se débeis pela janela mal vedada conseguiam impôr umas tréguas frágeis.
Levantava-se para esconder o desalento e a fadiga debaixo da cama, numa das caixas de plástico translúcidas, na companhia silenciosa de sapatos e chinelos velhos, fazia a barba, tomava banho, vestia-se e escondia as olheiras por detrás de um sorriso falso aparafusado ao rosto. O relógio, esse tirano implacável que lhe governava vida através do movimento lento dos seus ponteiros, dizia-lhe que eram horas de acordar o resto da família.
- Bom dia, querida! Dormiste bem?
Até ao fim do dia era tempo de tréguas. Logo, muito mais logo, o relógio e o cansaço
dar-lhe-iam o sinal de partida para nova refrega do seu cerco de Tróia pessoal.