domingo, 13 de abril de 2008

Recursos Humanos

Aprendi hoje, graças à prodigalidade semântica de um ilustríssimo conferencista, que sou um Recurso! Um Recurso Humano é certo, mas, ainda assim, um Recurso, uma simples ferramenta cujo destino está, logo à partida, inquestionavelmente ligado a uma avaliação objectiva, quantitativa e mensurável da sua produtividade e funcionalidade operacional.
Para começar temos logo a palavra em si, Recurso, que me evoca qualquer coisa a que se lança mão quando não temos a ferramenta mais adequada e que, à falta de melhor, lá vai remediando a situação, mas cuja utilização se revela sempre algo difícil, incómoda e ineficiente (por algum motivo se houve tanto falar em “situações de recurso”).
Depois, e para piorar as coisas, tenho, sobre qualquer máquina inorgânica industrial, a enorme desvantagem de não poder ser consertado com rapidez por via de uma reparação curativa, ou mantido em condições de funcionamento ideais à custa da programação e execução, cuidadosa e atempada, de operações periódicas de manutenção preventiva. Aliás, bem vistas as coisas e posta a nu a gravíssima condicionante referida, concluiu-se que se não produzir o suficiente (mais uma vez em termos estritamente objectivos, claro está), ou se pura e simplesmente não produzir de um todo, não tenho sequer a justificação aceitável de uma biela partida, ou de um cilindro quebrado. Nem sequer posso, ao contrário do que se passa com a fotocopiadora que mora numa imobilidade doentia no corredor do meu escritório, invocar o validíssimo pretexto de um simples transístor avariado que, estafado por uma agonia febril, tenha entregue a alma à entidade que zela pelo lado espiritual dos componentes electrónicos.
Dada a minha condição de Recurso Humano de manutenção autónoma e independente, em caso de avaria, o único responsável serei eu e, como tal, deverei ser penalizado num valor mínimo correspondente a três dias de trabalho e à redução da devolução parcial dos meus impostos, sob a forma de um benemérito subsídio de doença, a uns mero sessenta e cinco por cento do meu vencimento, se bruto se líquido, não sei ao certo (mas dada a velocidade aterradora com que o dinheiro me desaparece dos bolsos, mesmo quando reduzo as despesas aos consumíveis indispensáveis à manutenção em funcionamento dos Recursos Humanos cá da casa, deve ser líquido).
Ainda por cima, ao contrário do que acontece com o afiador de lápis eléctrico que, de tempos a tempos, anuncia a sua existência com guinchos histéricos de animal empalado, não entro numa actividade frenética de cada vez que sou solicitado. Levo sempre algum tempo (que por muito pouco que seja é tempo, logo é dinheiro) a compreender a tarefa de que me incumbem e, como se isso não fosse já suficientemente mau, tenho ainda por cima o mau hábito de sujeitar o que me é requerido ao escrutínio de uma avaliação pessoal. O cúmulo é quando, ao contrário do que acontece com o ferro de engomar lá de casa, que leva o seu tempo a aquecer (está velho, coitado! Um dia destes, deito-o fora e compro um novo todo modernaço, daqueles com cromados e botões de programação de curva de aquecimento e punho retro iluminado para maior conforto quando se passa a roupa às escuras), ainda há o risco de eu apresentar objecções à tarefa que me foi atribuída, expressar o meu desagrado pela mesma ou simplesmente recusar desincumbir-me dela com base em argumentos tímidos e titubeantes relacionados com a dignidade pessoal, profissional ou humana.
Aliás, analisando objectivamente a questão (que nestas coisas os critérios objectivos batem sempre os subjectivos por KO técnico com um magnífico gancho de mensurabilidade e um directo de quantificação bem encaixados nos queixos), nem sequer chego aos calcanhares do velho televisor a preto e branco que lá vai remediando a minha mulher à hora da telenovela quando é apanhada na cozinha, por entre tachos e panelas. Ao menos esse trabalha a qualquer hora do dia, desde a meia-noite às zero horas do dia seguinte, numa persistência e tenacidade louváveis e dignas de serem apresentadas como exemplo a qualquer Recurso Humano que se mostre recalcitrante a manter-se em funcionamento fora dos vagos limites sugeridos pelos Decretos-Lei emanados da Assembleia República (há até quem diga que o são em manada, como vacas a sair de um curro) e compiladas nessas coisas inúteis conhecidas pelos epítetos jocosos de “Código do Trabalho” e “Legislação Laboral” que, coitados, ainda vão andando por aí aos tombos, como velhos senis que se arrastam para o mostruário dos bancos de jardim na esperança fútil de que alguém lhes dar  ainda alguma utilidade.
Mas se porventura aceder ao que me é exigido/requerido/solicitado (por favor riscar o que não interessa da segunda palavra em diante), ainda pode acontecer que tenha a desfaçatez impúdica de solicitar o pagamento de horas extraordinárias ou poluir o ar da sala de reuniões com umas nuvenzitas esparsas de objecções, qualquer coisa sem importância relacionada com a necessidade de respeitar compromissos familiares ou pessoais inadiáveis. É assim como se os veículos motorizados se atrevessem a exigir uma dose suplementar de óleo como condição sine qua non para efectuarem qualquer tipo de transporte para além das dezoito horas, uma aberração despesista que só pode ser vista e entendida como uma anomalia de funcionamento a exigir, com a máxima urgência, medidas de correcção enérgicas.
Verdade, verdadinha, é que se fizer uma auto-avaliação do meu desempenho enquanto Recurso Humano, para ser honesto, teria de elaborar de imediato um memorando à minha chefia hierárquica a recomendar, em nome da rentabilidade e produtividade da minha augusta Entidade Patronal, a minha substituição imediata e incondicional por um qualquer simples gerador de aplicações (já vi por aí uns estupendos a serem oferecidos como brindes em CDs distribuídos com os jornais diários), adequado à plataforma de desenvolvimento que a Entidade Empregadora tenha por bem utilizar. Vocês sabem, desses em que metemos por um lado os requisitos da aplicação informática a desenvolver e ele excreta, de imediato, pelo outro, (normalmente ligado por cabos ao monitor do computador hospedeiro) o produto final pretendido, qual resultado natural do seu processo digestivo electrónico. Com sorte, basta depois embalá-lo em caixas de cartão ou plástico de cores garridas, com destaque especial para o logótipo da empresa, e, em questão de poucos minutos, está pronto a ser vendido ao Cliente Consumidor.
E já nem sequer me atrevo a comparar-me ao aspirador que, quase a custo zero, lá vai uivando, como qualquer cão rafeiro e sarnoso acorrentado por piedade a uma casota desconchavada, a sua disponibilidade solícita diligente e aduladora perante as solicitações aborrecidas das senhoras da limpeza.
Bem vistas as coisas começo a desconfiar que posso ser Humano, mas de certeza absoluta que não sou grande Recurso.
Valha-me Deus!
Um dias destes, ainda como com um desses palavrões do jargão técnico dos Gestores (upsizing, downsizing e não sei se existe até mesmo o middlesizing, mas é natural que sim porque as estas coisas têm que existir para todas as medidas) e dou comigo no meio da rua a fingir que sou ceguinho e a cantar um fado roufenho e desafinado à porta da Igreja mais próxima, de chapéu virado de cu para o ar, espetado debaixo do nariz de transeuntes incautos, por uma mão, com dedos de unhas compridas e sujas, atarraxada com solidez no fim de à extremidade um braço estendido, coberto pelos restos andrajosos da manga de um camisolão esmolado a custo à Santa Casa da Misericórdia.
Valha-me Deus…